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6 momentos em que Fernando Pessoa foi tradutor como a gente


✎ Por Janaina de Aquino

Fernando Pessoa é muito conhecido no Brasil como poeta português, mas poucos sabem que, da infância à fase adulta, viveu em diferentes países, portanto, tinha conhecimentos em inglês, francês, alemão, grego e, inclusive, latim. Sendo assim, ele traduzia, com frequência, de todas essas línguas, usando para isso diferentes discursos. Por exemplo, não compreendia literalmente o grego, mas era sensível à seu ritmo e sonoridade, logo usava um idioma de intermédio para se aproximar do ritmo original e conseguir equivalência rítmica.

Aliás a faceta de tradutor é tratada como "discreta". Para Rodrigo Lobo Damasceno, "Pessoa atribuía uma importância considerável a esta atividade, praticando-a tanto como atividade profissional quanto como exercício poético baseado em suas preferências. No que concerne às escolhas feitas por Pessoa dos poemas a serem traduzidos, portanto, parece-nos óbvio que nelas estão implicadas as obrigações profissionais (caso dos poemas de Góngora, Quevedo e Garcilaso de la Vega, por exemplo, já que Pessoa acreditava ser tarefa desnecessária traduzir do castelhano ao português e vice-versa) e também o seu gosto pessoal. Para além dos compromissos profissionais e da tradução como exercício formal, porém, acreditamos ser possível divisar, nas opções de Pessoa, sua atenção à representatividade dos poemas selecionados no que diz respeito ao ideário temático, artístico e filosófico compartilhado entre autor/tradutor e poema/poeta a ser traduzido. Neste sentido, é pertinente a observação de Saraiva de que Pessoa traduzia porque "prezava a pluralidade e o dialogismo, ou porque tinha um alto conceito do trabalho criativo da tradução" (SARAIVA, 1999, p. 44). "

Durante a Festa Literária de Pernambuco em 2015, Arnaldo Saraiva, investigador literário fundador do Centro de Estudos Pessoanos, foi questionado qual seria a língua materna de Pessoa. Ao que respondeu que "[Creio] que a língua materna de Pessoa foi, claramente, o português. Ele hesitou em ser escritor em inglês, uma língua que já tinha projeção internacional, e optou pelo português, para que o idioma alcançasse projeção nacional também."


Em nota bibliográfica de 30 de março de 1935, Pessoa, no entanto, apresenta-se como tradutor de profissão, mas não deixando de evidenciar que a mais exata será “correspondente estrangeiro em casas comerciais”. Sobretudo, ele considerava que o tradutor deve ter igual domínio da língua e também como consequência terá um conhecimento sobre essa cultura. Não deverá nunca o tradutor entrar pelo caminho das línguas e das culturas que não lhe são familiares, sendo por isso interessante mencionar a carta que escreve no dia nove de Novembro de 1931 a Luís Pedro Moutinho de Almeida: 

"[...] Eu mesmo, como sabe, sei alguma coisa de francês, mas não escreveria um livro nessa língua, a não ser sob ameaça de fuzilamento sumário, ou coisa parecida. Publiquei três poemas em francês - por sombra de brincadeira – em um número de contemporânea, e um amigo meu, profundo conhecedor do francês, pediu-me para não repetir a proeza." (ZENITH, 2007, p. 377)

Fátima Rufina dos Santos conta que "é relevante a ligação de Fernando Pessoa às duas línguas – a inglesa e a portuguesa, que o coloca numa condição, à partida, vantajosa, no que diz respeito à sua profissão, mas também se refletirá na atitude de Fernando Pessoa em relação à tradução onde se iniciou muito cedo. “Translation of Gray's Elesy to Portuguese” é mencionada por Maria Rosa Baptista (1990) como a primeira experiência de tradução do poeta. Fernando Pessoa apresenta-se, deste modo, como tradutor “ideal”, possuidor de conhecimentos sólidos que o colocam numa posição de privilégio perante a intermediação que fará entre as duas línguas. Na carta que envia a um crítico inglês no Outono de 1915 dá notícia da familiaridade que sente com as duas línguas:" 

[...] Sou português – completamente português -, mas educado numa colónia inglesa, pelo que as duas línguas me são igualmente familiares. Escrevo em ambas, embora só tenha publicado, e muito pouco, na menos conhecida (ZENITH, 2007, p. 133)

E, claro, como tradutor, passou por várias situações familiares a todos nós que praticamos a profissão. Extraí alguns trechos de um dos seus diários onde ele se refere ao ofício, por vezes com bastante desilusão, outras satisfação...

Diário

Novembro 1915


15 — A manhã começou com uma pequena desilusão: resposta negativa de Guimarães e Cª (mas boa notícia por causa do estado incompleto do panfleto). O dia passou de modo bastante agradável, com algumas pequenas (embora subjectivas) «suspeitas», de pouca importância. Entre as 3 e as 4 da tarde recebi, inesperadamente, 1 dólar e meio da parte de Senchi, por lhe ter passado à máquina as suas traduções. O dia acabou bem no Hotel com a tia Lisbella; (...) fiz-me amável para com ela e a sobrinha, obviamente. Muito cedo, no dia 16 (entre mais ou menos as 2 e as 5) tive uma grande excitação mental, ideias filosóficas. Fisicamente indisposto, flatulência. Mistura de megalomania e de ideias religiosas (de modo algum atacando a lucidez). Dormi das 5 e meia até às 11 do dia 16. Aquela parte da noite foi notável em termos de acção mental. (Ao voltar para casa por volta das 11 e meia da noite, tinha tido alguns pequenos e curiosos terrores de «espírito».) 

16 — Levantei-me tarde, perto das onze. Como durante a noite fiquei acordado até mais ou menos às 4, andei num estado um pouco confuso em consequência disto. No escritório aconteceu uma coisa boa: últimas provas do D. da R. tinham chegado: tenho portanto solução para a questão relativa à tia Carolina. Estas provas, inesperadas, foram cansativas. — Não consegui receber o dinheiro esta noite, tendo chegado, contudo, forçosamente tarde. Li Caeiro e R. Reis ao Raul Leal: pareceu-me que gostou muito deles e os compreendeu: bons momentos, portanto. Passeei com o Brito, conversámos abandonadamente acerca de «Orpheu». Jantei às 9 e meia. Fui para casa logo a seguir. Fumei muito menos, por força de vontade e por natural efeito disso.. Um dia agradável, no seu conjunto. (De manhã além das boas notícias por causa das provas, também notícias agradáveis na carta de Sol, quando se refere a Hermano Neves). 

23 — O mesmo género de dia. Trabalhei pouco na tradução. Os mesmos problemas financeiros. 

24 — Começou da mesma maneira de ontem, mas melhorou à tarde (entre as 3 e as 5) quando consegui um dólar do Franco. A noite foi muito agradável; tinha a mente lúcida. (...) ao ir para casa, caí numa depressão considerável, tive um desejo de exprimi-la por escrito mas não fui capaz de o fazer. 

25 — Despertei com uma dor de garganta, mas mais tarde passou. Um dia perdido mas não de modo desagradável, apenas desagradável por sabê-lo perdido. 

26 — Um muito curioso dia místico. Encontrei o César Porto. Fiz a liquidação (realmente reliquidação, embora melhor agora), casualmente, na Livraria Monteiro (...). Perdi todo o tempo com a tradução. Tive por 3 vezes durante o dia e a noite crises de uma espécie curiosa de vertigens — um género abstractamente físico; mas estive lúcido durante todo o dia. Fumei muito. (...) O dia foi inteiramente agradável, excepto ter sido um dia perdido. À noite tive uma conversa descontraída e muito agradável com Leonardo Coimbra. 

29 — Um dia mais ou menos interessante e feliz. Resolvi de repente a questão do dinheiro do Mário pois pedi emprestados 10 dólares (+ para livros) até ao dia 7 de Dezembro. A tradução chegou e foi fácil. Um estado de certa excitação, mas não prejudicial, e de facto ligeiro — encontrei o Leal e fiquei contente. À noite no hotel com a tia Lisbella, muito agradável; fiz olhinhos a uma rapariga bastante interessante que pareceu gostar de mim. Senti-me à vontade com elas (ela e talvez uma irmã), embora falasse pouco. O Imperador, alas! 

30 — Um dia praticamente perdido, mas agradável, as duas coisas porque, apesar de um pouco de chuva, o céu estava azul e belo, e porque a vida correu bem. À noite fiquei satisfeito por ouvir duas amáveis referências (Côrtes-Rodrigues e Perdigão) ao facto de eu estar bem vestido (Oh! eu?) e passei uma hora e meia muito agradável no hotel fazendo ainda mais olhinhos (e trocando olhares) com a rapariga (de 17 anos, excelente) e pareceu-me agradar-lhe, a ela, à irmã e até à sua surda mãe. Falei com ela com bastante à-vontade, olhando-a até directamente nos olhos. Alas!... 

Dezembro 


6 — Um dia desagradável porque choveu muito; o meu fato ficou enrugado, tive que esperar 1/2 hora na rua, e também porque a tradução progrediu muito pouco. Mas gostei de uma breve visita ao hotel porque só pude ficar pouco tempo (já que tinha que voltar ao escritório), e portanto não me aborreci, e a doçura da rapariguinha não tinha desaparecido de todo, embora eu não tivesse aparecido durante 3 dias. A tia Lisbella tinha pensado que a minha ausência se devia a eu ter ficado ofendido por «pôr-me na rua», na brincadeira, há várias noites... Achei isto divertido e agradável por ela ter pensado isso possível e ter-se preocupado. — Uma grande depressão à noite, quase sem dinheiro e muito deprimido. De tal modo deprimido que comecei a escrever uma carta ao Sá-Carneiro e a interrompi, devido à falta de vontade de escrever. (Também esperei durante muito tempo pelo Guisado, mas não veio). 

7 — Melhor, melhor. Um dia melhor, primeiro. A seguir, trabalhei bastante bem, mais tarde fiz tradução e fui ao escritório (15 cartas). Nada de depressão; antes o princípio de um raciocínio lúcido, ocultistamente antiteosófico.. O Vitoriano Braga falou comigo, de manhã, do Coelho de Carvalho que quer que eu traduza o Fausto; mas, que pena!, o ganho é hipotético e longínquo! 


Fernando Pessoa, em 'Diário - Manuscrito inédito'

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