Nossa percepção de tempo muda quando falamos outra língua? Um outro ponto de vista.
Vista de uma cachoeira na região da Amazônia peruana |
Recentemente, correu na internet um estudo
feito com nativos em língua sueca, espanhola ou bilíngues em que mostrou que os
idiomas influenciam nossa forma de vivenciar o tempo. Legal. O mais
legal é que existem outros idiomas, “fora do circuito”, que guardam
curiosidades bem interessantes sobre a forma como agimos e pensamos segundo a língua
que falamos. Para ilustrar, vou apresentar o caso da língua
amahuaca, falada pelo grupo étnico de mesmo nome que vive na Amazônia
peruana e parte da brasileira.
A LÍNGUA AMAHUACA
por Janaina de Aquino
Digamos que nosso amigo Seu Zé foi
pescar. Ele pescou dois lambaris. Maria conta para D. Cocota sobre o feito enquanto prepara o café da manhã. Imaginando que D. Maria e D.
Cocota são duas comadres falantes de língua portuguesa, depreende-se que Zé pescou os lambaris hoje de manhã,
(agora) há pouco, algumas horas atrás ou mesmo ontem. Se o fato é contado
depois do almoço, enquanto D. Maria passa o café da tarde, a percepção temporal
continua a mesma, ou seja, em algum momento daquele mesmo dia ou do dia
anterior foram pescados dois lambaris. Para se ter certeza, se for muito
curiosa e for importante para a conversa, D. Cocota pode perguntar quando (exatamente Zé pescou os
lambaris).
Até aqui, tudo bem. Nada de novo sob
o sol. Tudo pode mudar, contudo, se olhamos esta conversação na língua amahuaca.
Por exemplo, a frase "Zé
pescou lambari" dita na língua amahuaca na parte da tarde significa que Zé
pescou-T lambari de manhã (daquele mesmo dia). Agora, caso seja dita na parte
da manhã (do mesmo dia), significa que Zé pescou-T lambaris no dia anterior.
Isso porque a língua amahuaca tem um sufixo no tempo verbal (vamos chamá-lo de 'T') que pode impor um significado
diferente ao verbo de acordo com a hora do dia. Em outras palavras, o sufixo
‘T’ (para simplificar as variações possíveis) afeta a interpretação do tempo
verbal de acordo com a quantidade de luz (do dia), independente de ser entre
uma noite e outra. Complicado? Pense assim: se D. Maria conta a história lá
pelas 9h da manhã, ainda não houve “dia o suficiente” para o ocorrido, fato que
muda pela tarde, afinal, passou-se ao menos metade do dia, logo pode muito bem ter ocorrido ontem.
E por que isso acontece?
Bom, “fenômeno” similar
pode ser observado na língua shanenawa que, assim como amahuaca é pertencente
à família Pano. No estudo “Descrição
morfossintática da língua shanenawa (Pano)” , Gláucia Vieira
Cândido esclarece sobre “o uso de um ou outro passado depende fundamentalmente
do ponto de vista do falante”:
normalmente, muitas comunidades indígenas usam para quantificar o mês, a Lua e para o dia, o Sol. Nesse sentido, por exemplo, o passado imediato localiza-se num intervalo entre o nascer e o pôr-do-sol; no período anterior a este, temos o passado recente; em um período de uma lunação (sucessão das fases da Lua) temos o passado longínquo; enquanto o passado remoto se refere a muitas lunações.
Em outras palavras, o recurso usado
pela língua amahuaca se baseia na quantidade de tempo decorrido entre o momento
da enunciação e o momento do acontecimento do evento verbal.
De acordo com Katarzyna Jaszczolt,
na obra Semantics and Pragmatics: Meaning in Language and Discourse, os tempos verbais gramaticais refletem a o
ponto de vista temporal dependente da cultura dependência cultural.
Este artigo é parte da Diários de linguística, uma seção
escrita por Janaina de Aquino para desenvolver e divagar, como forma de
compreensão e assimilação, temas sobre língua e inteligência artificial com os
quais se depara no curso de Computação Linguística na Universidade de Tübingen,
Alemanha.
Para saber mais:
Gláucia Vieira Cândido, Descrição
morfossintática da língua shanenawa (Pano). (1998). Em português.
Stephen C. Levinson, Pragmatics.
(1983). Em inglês.
Katarzyna Jaszczolt, Semantics and Pragmatics: Meaning in Language and Discourse. (2002). Em inglês.
Katarzyna Jaszczolt, Semantics and Pragmatics: Meaning in Language and Discourse. (2002). Em inglês.
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